No dia 13 de julho de 2009, Valdenir Benedetti deixou este mundo para viver entre as estrelas, talvez seu ambiente mais familiar. Porém aqui permanece imortalizado pela sua maneira de pensar e ensinar a astrologia. Muito amado por muitos, deixou uma marca indelével em seus alunos e em todos os astrólogos que com ele conviveram e que reconheceram nele um renovador da nossa arte de interpretar os céus. Como acontece a todos os que ousam transgredir, questionar e inovar, também teve lá seus desafetos, faz parte... Por sorte deixou inúmeros textos, alguns publicados outros não. Este blog foi criado para que todo o seu pensamento fosse acessível tanto aos que o conheceram quanto aos que, ao longo de seu aprendizado da Astrologia, com certeza dele ouvirão falar.



"Há pessoas que nos falam e nem escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidase nos marcam para sempre."

Cecília Meireles







26.6.10

PEQUENAS TIRANIAS, PEQUENOS TIRANOS

Na tradicional novela das oito, um personagem tem um pensamento diante do discurso de sua mulher, que imaginando que ele fugiu com "outra", foi até o outro lado do mundo atrás dele. Diante da insistência dela em que ele se declarasse doente ou louco para que ela pudesse cuidar dele, ele pensa: "ela prefere me ver doente e infeliz para que possa cuidar de mim. Prefere que eu esteja fraco e tenha perdido a razão do que inteiro, apenas para poder me controlar".
Fiquei pensando... Será que eu também faço isso? Será que tiranizo pessoas por apego, insegurança? Quantas vezes terei feito isso em minha vida

Localizar os momentos em que isso aconteceu comigo foi fácil. Instantaneamente a memória localizou no rio do tempo as vezes em que me permiti ser tiranizado por alguém, as situações em que assumi a condição de vítima e fui sugado, vampirizado por alguma pessoa que eu julgava me amar.

Essa situação não é extraordinária em nossas vidas. Não é inédita e se repete inúmeras vezes através das mais variadas fórmulas e artimanhas dentro dos relacionamentos humanos.

Porque alguém faz isso? Preferir que a pessoa que ela diz amar, seja filho, marido, esposa, amigo, enfim, preferir que a pessoa amada esteja fraca, debilitada, sem rumo, para que possa depender e necessitar de seu "amor" e cuidados? Qual o nome desse comportamento?

Resolvemos adotar o conceito apresentado por Castañeda em sua obra, onde D. Juan afirma existirem os "pequenos tiranos" que são todos aqueles que nos oprimem e acabam nos conduzindo na maioria das vezes, a experimentar uma transformação pessoal.

Acontece que nem sempre os Pequenos Tiranos de nossas vidas deixam espaço para que a transformação ocorra. Eventualmente podemos ficar tão debilitados, tão enfraquecidos por suas manobras que não restam forças para que possamos reagir e encarar um novo movimento em nossas vidas. Podemos nos transformar num tipo de escravo, dependente, amorfo, sem força e vitalidade para seguir em frente, sempre dependendo da atenção, do cuidado, da autoridade ou seja lá o que for que o pequeno tirano tenha utilizado para nos dominar.

Precisamos ficar atentos para outra coisa: os momentos em que nós somos os tiranos. E isso acontece com tanta freqüência quanto sermos tiranizados. Aliás, uma coisa não pode existir sem a outra. Proporcionalmente à nossa capacidade de tiranizar alguém, existe o espaço para que sejamos controlados e dominados por outros. Um lado desse comportamento não pode existir sem o outro, como se fosse uma guerra constante em nossas vidas. É necessário que tenhamos a referencia interior da necessidade de controlar para que surja o espaço através do qual seremos eventualmente controlados.

Mas é realmente difícil localizar na memória nossa condição de pequeno tirano. Parece que todos os momentos que tem essa característica em nosso comportamento tem uma boa causa, tem uma justificativa honesta. Sempre que nos percebemos tiranizando alguém, é por um bom motivo. Por amor, por carinho, por cuidado, porque a pessoa precisava de nós, porque ela não consegue andar sozinha, porque podemos fazer algo por ela que ela está incapaz naquele momento. Tudo desculpa esfarrapada que nos damos! Estamos apenas sendo pequenos tiranos, seja em nome do amor ou da amizade, seja porque nos achamos superiores e temos o poder de orientar aquele que está precisando de orientação.

Será mesmo? Seremos mesmo superiores a alguém? Será que para manter essa condição de "superioridade" não é necessário criar mecanismos e artimanhas para deixar o "outro" na condição de dependência e inferioridade artificiais?

O que sei é que é realmente difícil localizar e reconhecer na historia de nossa vida o momento ou a situação na qual a gente possa considerar a si mesmo um vampiro, um aproveitador da fragilidade do outro. Sempre teremos um argumento fortíssimo e uma desculpa esfarrapada. Sempre encontraremos uma razão clara de porque fizermos isso, e com a melhor das intenções, para auxiliar o outro a ir em frente e crescer. É o que conseguimos pensar. Esse negócio de controlar e vampirizar e reduzir o outro ao mínimo denominador comum é para outras pessoas, desonestas e sacanas, aproveitadoras e manipuladoras. Somos honestos e verdadeiros demais para cometer esse tipo de jogo sujo. Não é?

Bem, vamos tentar concatenar as idéias e encontrar uma forma de reconhecer se somos ou quando somos esse tipo de pessoas que não apreciamos nem um pouco. Vamos procurar referencias dentro das quais possamos nos examinar e perceber se, mesmo inconscientemente, estamos ou estivemos em algum momento de nossas vidas praticando o jogo da manipulação, o jogo das pequenas tiranias.

Para começar, vamos estabelecer alguns padrões de relação entre dominados e dominadores, pequenos tiranos e pequenos tiranizados, e vamos ver se nos encontramos em algum dos lados dessa dolorosa questão. Para isso vamos idealizar alguns tipos de personalidade, modelos que servirão apenas de referencial nessa nossa busca de identificarmos em nós mesmos a condição que estamos trabalhando. Não vale ficar localizando só nos outros...

Os tipos que estamos propondo tem duas naturezas, uma masculina e a outra feminina, e ambas habitam cada um de nós e funcionam como referencias projetivas para que encontremos esses personagens fora de nós. Sempre, nessa linha de pensamento, os dois tipos existirão dentro de cada um de nós, habitarão junto nosso imaginário e serão referencias de personagens que incorporamos em nossas relações, servem de base para o roteiro de comportamento que nos coloca na condição de tiranos ou tiranizados e servem para compreendermos nossas projeções, se ousarmos assumir isso de verdade.

CURADORES E DOENTES

O primeiro grupo de personagens, ou subpersonalidades se preferirem chamar assim, envolve a saúde e a doença e podem existir dentro de nós como um modelo adotado para dominar as demais pessoas. Um modelo que tanto pode ser consciente ou inconsciente, mas que se pensarmos bem e honestamente, pode ser talvez o modelo que alguns de nós estamos adotando e nem tínhamos percebido. Temos duas mulheres, uma aparentemente forte e outra fraca, dominadora e dominada, e dois homens, seus parceiros e complementos, um com tendência a ser tiranizado e o outro a tiranizar. Eles casam muito bem suas naturezas e, enquanto não aflorar a consciência de que esses personagens são nefastos e impedem a evolução do ser, continuarão a perpetuar o jogo dos pequenos tiranos através desse artifício desequilibrado.

A primeira personagem que apresentaremos é a Curadora. Uma pessoa poderosa, meio feiticeira, carismática, muito sensual e sexual, sedutora, capaz de fazer o homem sentir-se vitalizado e curado de seus males. Está sempre disponível para aliviar o sofrimento do homem, sabe a fórmula mágica, a receita, o encantamento para fazer voltar a vida naquele que muitas vezes já perdeu a esperança. Ela precisa que o homem esteja em desequilíbrio, físico, mental, espiritual, para poder exercer seu poder, que é o de curá-lo. O homem saudável não lhe interessa e pouco se interessa por ela.

O Doente, por sua vez, encontra na Curadora seu par ideal. Se apaixona, aprecia aquele cuidado todo, depende dela para seguir em frente. Reconhece a força que ela lhe da, percebe como ela sabe dos caminho e pode orientá-lo para encontrar o equilíbrio e dar certo na vida. Ele precisa continuar doente para que ela continue gostando e cuidando dele, e ela precisa dele doente para alimentar seu poder, senão, não faz sentido ficarem juntos e não tem nada para trocar, não tem tirania. O doente não precisa estar fisicamente doente. Pode ser uma pessoa desequilibrada em qualquer sentido, financeiramente, emocionalmente, moralmente, em qualquer caso, é um doente e precisa da curadora para atendê-lo e tiraniza-lo.

A contrapartida da Curadora é o que podemos chamar de Fadinha. Uma neo hippie, com olhos sempre úmidos e brilhantes, olhar mais para o deslumbrado que deslumbrante. Ela está sempre buscando um curador, um Guru, que é sua cara metade. Adora fazer cursos esotéricos de final de semana, e invariavelmente se apaixona pelo mestre. Ela é carente e frágil e adora que um homem poderoso e cheio de mistério venha lhe mostrar os caminhos da vida. E muitas vezes encontra, e quase sempre se arrepende. Também pode ter tendência a adoecer com freqüência. É frágil.

O Guru, por sua vez, tem o olhar perdido e focalizado em algum ponto atrás do interlocutor, ou intenso e forte, focalizado nos olhos, como se estivesse querendo entrar na mente daquele que recebe o olhar. Costuma ser muito sedutor. Conhece mistérios que mais ninguém sabe. Nunca estão nos livros seus segredos. Sabe as respostas para os grandes problemas existenciais, é compreensivo, bom ouvinte e sempre tem uma resposta pronta para as indagações, uma fórmula, uma saída para os dilemas que afligem seus clientes ou adeptos.

Pode ser um terapeuta, um astrólogo, um líder comunitário ou religioso, ou um simples conselheiro de fim de semana, mas é um Guru, tem discípulos e principalmente, discípulas, as Fadinhas, que eventualmente tiraniza. Gosta de sentir-se um curador e algumas vezes até acredita que tem mesmo poderes de cura.

Esses quatro tipos, quase caricaturais, são encontrados com freqüência entre "buscadores", seja da verdade, seja da cura. Qualquer um de nós pode incorporar um deles e viver buscando nossa inteireza no seu oposto complementar. Podemos ser doentes ou curadoras, gurus ou fadinhas, todos pertencendo à mesma tribo, eventualmente mudando de personagem, invertendo os papeis. A curadora se torna uma fadinha e se submete a um guru pelo qual se apaixona. O guru se transforma em um homem doente e assim por diante, mas em todos os casos, o teatro representado nesse palco é o dos tiranos e tiranas que buscam a fragilidade, a doença e o desequilíbrio do outro para dominá-lo, ou incorporam a própria fragilidade para serem tiranizados.

SUCESSO E FRACASSO

Nesse grupo está o pessoal que tiraniza pelo poder material, pela capacidade de criar dependência financeira. São indivíduos que se preocupam com sua imagem em seu grupo social. Se acham importantes e reconhecem como seus iguais apenas aqueles que estão no mesmo patamar financeiro, sejam ricos ou pobres. Seu valor é medido pela quantidade de bens que possuem, o que pode ser representado por uma mansão ou um barraco, um iate ou uma bicicleta. Geralmente os raros momentos de ternura são dirigidos apenas àqueles que não podem tirar nada deles, os que não precisam. Sua lealdade é para com os parentes próximos, e mesmo assim se não houver bens familiares para disputar.

Aqui encontram-se muitas pessoas que promovem atividades beneficentes de todos os tipos, dirigem associações para pessoas carentes ou promovem eventos para arrecadar fundos para entidades filantrópicas que seus "semelhantes" provavelmente dirigem. Esse alimento da vaidade faz parte do jogo da tirania desses personagens.

Entidades como "Rotary" ou "Lions" são celeiros desse tipo de tiranos e tiranizados. Em outro nível, associações de amigos de bairro também são.

Nesse segundo grupo, iniciaremos apresentando a Executiva, uma mulher poderosa, ambiciosa, determinada, culta, lógica, positiva e impositiva. Costuma adorar o trabalho que faz. Tende a se vestir com elegância. É requintada e se possível, freqüenta bons lugares. Não se mistura com qualquer um e não gosta muito das pessoas do grupo anteriormente descrito, o dos curadores e dos alternativos. Costuma escolher um homem fraco para tiranizar, e a marca da fraqueza desse homem é o fracasso. Um empresário frustrado que não consegue fazer sucesso, um homem para o qual os negócios e projetos, a maioria mirabolantes e irreais, costumam resultar em estrondosos fracassos.

A executiva está sempre ao lado desse homem, aconselhando, apoiando e deixando claro sua impotência e incapacidade, para poder continuar tiranizando- o. Cada vez que esse homem se orienta para o equilíbrio e o sucesso na vida, a Executiva arruma uma maneira de puxar o tapete dele, por exemplo, não permitindo que ele assuma um novo projeto, um novo emprego, ou abra seu próprio negócio, e assim vai atestando e alimentando sua incompetência.

O Fracassado é um personagem cada vez mais freqüente nos dias de hoje, ocorrendo nos mais diversos níveis, desde o peão desempregado que tem que ser sustentado pela mulher que trabalha de faxineira, até o grande empresário especializado em fazer maus investimentos e que precisa contar com os recursos e o apoio moral da parceira para poder seguir em frente.

O fracassado depende quase que totalmente da orientação da executiva, sua parceira ideal, que parece saber todas as respostas, e quase sempre está com um sorriso irônico nos lábios e uma frase do tipo "eu bem que avisei", pronta para ser dita, deixa-lo humilhado e evidenciar sua incompetência para administrar a própria vida.

Esse personagem, o fracassado, não precisa ser mal sucedido apenas nos negócios ou estar desempregado. Sua performance sexual é muitas vezes insatisfatória, pelo menos no ponto de vista de sua parceira. Seu comportamento é eventualmente ridicularizado por ela entre os amigos comuns. De qualquer forma, a executiva precisa mantê-lo sentindo-se inferior e pequeno para que possa tiranizá-lo devidamente.

Quando o fracassado se torna o tirano, ele incorpora o Empresário, um homem bem sucedido dentro de determinada ótica. Sabe ganhar dinheiro e sustentar com segurança sua família. Se não for um empresário propriamente dito, é uma pessoa bem empregada, dentro do seu padrão social e nível de exigência. Ambicioso e determinado, com grande inclinação a ocupar cargos de poder. Costuma se preocupar bastante com a aparência, ao contrário do fracassado, e se orgulha de se relacionar com pessoas de "nível", uma de suas maiores vaidades, depois do carro e da casa...

O empresário pode ser rígido em seu comportamento, severo com os funcionários, com os filhos, com a esposa um típico homem durão que é mais respeitado pelo temor que causa do que por admiração. Algumas vezes pode pertencer à variante do "falso bonzinho", supostamente compreensivo e generoso, mas tão tirano quando o durão.

Não é nenhum garanhão, mas faz questão de assim parecer. Também pode colecionar troféus de suas conquistas, no esporte, no trabalho, no amor. Ele nunca chora, não demonstra sua fragilidade jamais, a não ser que seja necessário para manter o emprego ou o cliente, aquilo que garante seu ilusório poder, pois sem esse poder, que é principalmente o de mantenedor, o que vai lhe restar? A quem ele vai poder tiranizar se não puder pagar por isso?

A Dondoca é a parceira ideal do empresário. Vive para administrar seu lar, seus filhos, seus jantares e suas cuecas. Não costuma estudar e não tem vida própria. É uma "manteúda". Não investe em atividades ou estudos que lhe dêem autonomia e independência, pois o executivo geralmente não permite. No máximo freqüenta academia ou cursos adequados para donas de casa. Se eventualmente trabalha, pode ser como proprietária de boutique, por exemplo, ou algum trabalho voluntário de assistência social. Algumas personagens desse grupo costumam ser assíduas freqüentadoras de algum clube ou sociedade beneficente. Claro que em um grupo social de menor poder aquisitivo também existe a pessoa que corresponde à dondoca, que também vive para cuidar do lar e das cuecas do marido. Igualzinho. Ela precisa ser assim para poder ser tiranizada pelo respectivo parceiro.

Esses quatro tipos são bastante comuns. Creio que correspondem à uma grande fatia da população das grandes cidades, principalmente. Todos nós conhecemos algum desses tiranos ou tiranizados, mas o difícil mesmo é a gente aceitar que talvez, em muitos momentos ou na maioria dos momentos, a gente seja um deles. Um empresário provedor, uma executiva ambiciosa e autoritária, um fracassado que nunca chega aonde quer chegar, uma dona de casa manteúda que vive uma vida medíocre totalmente dedicada ao cuidado dos filhos e do marido, raramente experimentando um pouco de emoção ou alguma aventura. Vida de gado onde a coisa mais divertida que pode acontecer é se tornar tirano de alguém que de alguma forma depende de nós para sobreviver, isso quando não estamos na condição de tiranizados e dependemos totalmente de nossos tiranos e tiranas para sobreviver, ao menos emocionalmente.

A FOGUEIRA DAS VAIDADES

Vamos ao terceiro tipo de descrição de possíveis padrões para tiranos e tiranizados. São modelos e referencias para tentarmos localizar em que momento nos comportamos como tiranos, principalmente, porque é de fato difícil para qualquer pessoa normal reconhecer-se nesse papel terrível, e como podemos perceber até agora, pelos padrões sugeridos, identificar-se como tiranizado também pode ser doloroso. Ou não?

Nesse terceiro grupo, encontraremos aqueles que são guiados especialmente pela vaidade. Seu poder se encontra no brilho social, no prestígio, no "status", na gloria que possam obter e expressar. E ai está a fonte da sua tirania, a importância pessoal, ou sua ausência.

Vamos começar pelo tipo "socialite", um tipo feminino que tem brilho, prestigio, poder social, é conhecida e reconhecida e, ficar perto dela, ser convidado para ela para algum evento, confere ao que recebeu a dádiva uma parte de seu poder pessoal, além de oferecer ao conviva a possibilidade dele experimentar seus 15 minutos de fama e gloria.

Como ela obteve esse poder ninguém sabe. Pode ser filha de família tradicional, pode ter sido um expoente em sua época escolar, conservando o prestígio obtido entre as amigas. Pode também ter sido educada para isso, talvez pela mãe que exigiu que ela, a "socialite" fosse uma pessoa de grande evidencia social. De qualquer forma é uma pessoa importante, ou melhor, alguém que se julga importante, pois se formos examinar com maior cuidado essa importância, veremos que é apenas uma frágil casca, aparência efêmera que não resiste à primeira pressão da realidade.

A "socialite" está sempre oferecendo alguma coisa, como se ela tivesse o poder de conduzir as outras pessoas ao sucesso e reconhecimento que ela imagina possuir. Na verdade não oferece nada além do "direito" das pessoas admirarem e prestigiarem sua imagem. No fundo é uma pessoa que pode ser vazia, sem o menor conteúdo. Palavras e palavras que em nada melhoram a qualidade de vida de ninguém. Mas é uma tirana, pois sua estratégia é fazer as demais pessoas se sentirem inferiores a ela, a sua cultura, aos seus conhecimentos e conhecidos (costuma "conhecer" todo mundo que é "importante") ou a seu poder econômico, no caso da "socialite" de posses, pois existe também esse personagem no universo das pessoas de menor poder econômico. O dinheiro não é necessariamente sua referencia e sim o prestígio e o fato de conhecer muitas pessoas e a vida dessas pessoas. Ai está sua principal fonte de poder.

A contrapartida masculina dessa personagem é o "opaco", um cidadão que se comporta como alguém pequeno e frustrado, anda encurvado, fala mal, se apresenta mal, precisa da orientação constante da "socialite" para saber que caminho seguir e como se comportar. Desaparece totalmente quando está ao lado dela em alguma situação social, é inexpressivo e em geral, não tem nada a dizer, aliás, quando ousa falar próximo a sua tirana favorita, ou ela já tinha falado antes do assunto, ou ela corta seu discurso para mostrar que quem dispõe da informação correta é ela.

O "opaco" costuma possuir uma raiva secreta dentro de si. É um ressentido que fica rosnando em silencio com medo de que sua tirana perceba. Se tiver um dia oportunidade de criar uma situação que humilhe publicamente essa tirana, certamente o fará, desde que ninguém saiba que é ele, pois não resistiria à pressão se fosse questionado a respeito do assunto. Por isso a "socialite" mantém o seu opaco de plantão bem preso em sua coleira, submisso, dependendo totalmente dela para que sua vida tenha o mínimo sentido. O opaco é tão nada em termos de importância social que em geral é conhecido como o parceiro, marido, amigo, o que for, da "socialite". É um tipo de "príncipe consorte" como ocorre na realeza britânica, de quem quase ninguém lembra o nome.

O modelo feminino que se opõe à tirana "socialite" é o que chamaremos de "deslumbrada". Uma pessoa que está sempre em busca de estar perto de alguém famoso. Se sacrifica para isso, compra roupas que nem sempre pode comprar, estuda línguas, posturas, gestos, etiqueta, desenvolve personagens compatíveis com uma realidade social que nem sempre é a de sua origem. Quer ser o que não é e paga um alto preço por isso.

É fascinada por artistas, por qualquer um que tenha relevância social, por qualquer um que esteja sobre o palco ou na tela da teve. Se submete até mesmo a humilhações para estar perto de gente famosa. Arruma convites para festas para as quais não seria normalmente convidada, invade camarins e bastidores de shows, se apresenta como alguém importante e finge conhecer muita gente importante. É um personagem que procura representar uma importância que sabe não possuir, e para isso mente até para si mesma. Está disponível para ser tiranizada, manipulada, usada por qualquer pessoa que tenha um mínimo de expressividade social.

A "deslumbrada" é frustrada por ser o que é e não ser o que gostaria de ser. Nega seus melhores talentos e suas qualidades pois não acredita em si mesma. Se ilude com a imagem de superioridade que projeta nos outros e parece que para ela só o que conta é isso, a imagem. Conteúdo, sensibilidade, conhecimento real, nada disso lhe interessa.

Mesmo que seja uma pessoa de posses, sempre acha que os outros possuem mais do que ela. Mesmo que seja uma pessoa talentosa, acredita que não tem talento nenhum, e que qualquer pessoa possui mais talento do que ela. Costuma negar o amor que lhe é oferecido por pessoas sinceras e ir atrás de quem a menospreze, pois assim sente confirmada sua inferioridade e sua personalidade, que pede para ser tiranizada, encontra coerência nesse tipo de comportamento.

Por outro lado, o modelo de personagem que se opõe à "deslumbrada" é o "artista". Um homem que se importa muito consigo mesmo e com o que pensam dele. Vive para isso, causar impacto, impressionar, exibir seus talentos e seus recursos a qualquer preço. Sua importância está toda em sua imagem e mais nada.

É um tirano que precisa alimentar sempre a inferioridade nos outros para sentir-se vivo. Costuma esnobar os mais frágeis ou as pessoas de menor recurso. Precisa do deslumbramento para alimentar seu ego vaidoso e possui inúmeros artifícios para isso.

O artista é um indivíduo que investe muito no "marketing" pessoal. Mesmo que esteja vendendo um produto vazio, ausência total de conteúdos, o que importa é a imagem, é o poder que possui por circular em todos os grupos, em ter seu nome sempre mencionado, em ser convidado para todos os tipos de eventos como se fosse importante sua presença, e ele faz com que assim seja. Raramente tem algo de verdadeiro para oferecer, mas faz como se tivesse, ilude as pessoas até o dia que percebem que seu único conteúdo é conhecer muitas pessoas e se fazer de importante para elas. Ele se alimenta do deslumbramento dos tolos, a quem tiraniza sem a menor compaixão.

Esses modelos são apenas referencias para tentarmos localizar um pouco aqui, um pouco ali, onde nos encaixamos como tiranos ou tiranizados. Poderíamos acrescentar mais algumas dúzias e certamente nos veríamos em muitos desses modelos, como podemos nos situar nesses que foram apresentados.

Não é comum haver um tipo puro, todos nós somos um pouco de cada coisa, tanto nos modelos de tiranos quanto no dos tiranizados. Às vezes somos empresários, ou artistas, ou deslumbrados, ou doentes, mas o jogo da tirania faz parte da vida contemporânea, faz parte da falta de amor que um modelo civilizatório distorcido nos impõe, pois podemos notar que a característica comum de todos os personagens é a absoluta falta de amor, tanto por si mesmo quanto pelas outras pessoas. Só assim, sem amor, pode ser praticado o jogo da tirania. Somente na ausência de amor podemos nos dar ao trabalho de manter o "outro" atrelado a nós por sua inferioridade e insuficiência, pouco ou nada fazendo para estimular seu crescimento e liberdade.

O momento pede uma reflexão a respeito do jogo das pequenas tiranias. Será que vale mesmo a pena? Será que ocorre algum crescimento verdadeiro, alguma evolução em nosso espírito através desse procedimento? Ou será que, ao sermos tiranos ou nos permitirmos ser tiranizados estamos nos afastando de nossa essência e de nossa possibilidade de darmos um sentido maior à nossa existência, estamos apenas nos "apequenando" em ambos os casos?

Como o tema é bem interessante e oportuno, e como estamos precisando trabalhar em nós mesmos esse habito cultural nefasto, estaremos ampliando essas reflexões em um próximo artigo.

Val Benedetti

2002

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