No dia 13 de julho de 2009, Valdenir Benedetti deixou este mundo para viver entre as estrelas, talvez seu ambiente mais familiar. Porém aqui permanece imortalizado pela sua maneira de pensar e ensinar a astrologia. Muito amado por muitos, deixou uma marca indelével em seus alunos e em todos os astrólogos que com ele conviveram e que reconheceram nele um renovador da nossa arte de interpretar os céus. Como acontece a todos os que ousam transgredir, questionar e inovar, também teve lá seus desafetos, faz parte... Por sorte deixou inúmeros textos, alguns publicados outros não. Este blog foi criado para que todo o seu pensamento fosse acessível tanto aos que o conheceram quanto aos que, ao longo de seu aprendizado da Astrologia, com certeza dele ouvirão falar.



"Há pessoas que nos falam e nem escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidase nos marcam para sempre."

Cecília Meireles







26.6.10

O JOGO DA VÍTIMA

O xamã mexicano Don Miguel Ruiz faz uma crítica feroz aos condicionamentos da vida moderna, que conformam o indivíduo a uma ideologia alienante e anestésica: é o "Sonho do Planeta", que anula o livre arbítrio e a lucidez da consciência. Com base em Don Miguel, fiz uma análise da questão das crenças, dos julgamentos, do medo e da vitimização.

Júpiter e a mutabilidade gasosa

O sistema de crenças é como o Livro da Lei que regula nossa mente. Sem questionar, o que estiver escrito no Livro da Lei é nossa verdade. Baseamos todos os nossos julgamentos segundo o Livro da Lei, mesmo que esses julgamentos e opiniões venham contra nossa própria natureza. Mesmo leis morais como os Dez Mandamentos são programadas em nossas mentes no processo de domesticação. Um a um, todos esses compromissos passam a constar no Livro da Lei, e esses compromissos regem nosso sonho.

O planeta Júpiter e a questão que o envolve - casa IX, Sagitário - representam a elaboração das Leis de um modo geral. Representam nossa aceitação às Leis, nossa identificação com as Leis, sejam as do Livro da Lei que regula o nosso Sonho coletivo, sejam as Leis da Natureza.

A casa IX do horóscopo simboliza, por ser a terceira casa de Fogo, o Fogo Mutável, e como é próprio do modo Mutável, representa uma passagem, um momento de compreensão na dinâmica dos signos. Enfim, esta casa é o aspecto mais sublime de nossa identidade, simbolizada pelo Fogo, é o momento em que transcendemos nosso modelo normal e conhecido e experimentamos uma passagem dimensional para outro plano do elemento, da vida, no caso, conquistamos uma nova Identidade. Por isso, a casa IX simboliza o futuro da nossa identidade, aquilo que queremos ser além de nós mesmos, aquilo que gostaríamos de "ser quando crescermos".



O modo Mutável é, fazendo uma analogia com os estados da matéria, equivalente ao gasoso, enquanto o Fixo corresponde ao estado sólido e o cardinal ao líquido. Este "gasoso" do mutável, seja de Sagitário, Peixes, Virgem ou Gêmeos, pode significar um meio adequado para a propagação do som, ou das idéias, mas pode representar uma neblina, uma névoa que distorce as imagens e impede que a gente veja a real realidade.

Ir além de mim mesmo, como indica o Fogo Mutável de Sagitário e é a função da nona casa, implica ter acesso às Leis Naturais que permitem isto. Implica estabelecer uma relação mais profunda com a Totalidade, e por isso o mecanismo de compreensão das Leis que regulamentam todos os movimentos da Natureza.

A redução deste processo evolutivo natural aos mínimos denominadores comuns estabelecidos pelo Sonho do Planeta faz com que identifiquemos apenas as Leis contidas no Livro da Lei que regulamenta o sonho, e com isto percamos nossa possibilidade de nos vincularmos às Leis Maiores, à Lei da Natureza, a Lei que está contida em nossa essência e em nossa condição de Ser Natural.

Neste caso, em função do compromisso com o Sonho do Planeta, e com nosso Sonho Pessoal, - que foi elaborado a partir de nosso filtro pessoal (identificável pelo horóscopo), mas cujos parâmetros foram fornecidos pelo Sonho coletivo - a perspectiva de sermos mais do que somos, de evoluirmos para outro plano da existência, para projetarmos e criarmos a expectativa de uma nova e cada vez mais requintada identidade, torna-se limitada, ou melhor, atrelada a este Sonho. E, como podemos observar, a proposta do Sonho do Planeta, de um modo geral, é de acumular, ter cada vez mais, possuir, estabilizar, conservar. Tudo bem, não é uma má proposta, afinal, estamos encarnados e somos por enquanto seres físicos, profundamente vinculados e dependentes de uma realidade material. Mas o problema é que é só isto, paramos nisto, nos bastamos com isto.

O peso do compromisso com a realidade material se transforma em um lastro, em um limite difícil de ser superado. Nosso desejo de ser "mais", de evoluir, de nos tornarmos mais plenos, está sempre circunscrito pela necessidade de estabilidade e conforto, o que cria um conflito entre a possibilidade de transformação e a necessidade de conservação. E o sonho nos impõe a conservação. Esta é a idéia de "normalidade" que nos é imposta, a idéia de "mundo perfeito" e de felicidade que aprendemos desde a infância.

Fica difícil saber para onde ir, além destes referenciais materiais e comportamentais. Fica difícil imaginar que poderíamos ser algo mais do que somos, sem abrir mão do conforto material e da segurança.

Tanto a questão II quanto a questão IX (quando as outras casas todas do horóscopo) tornam-se um peso, algo que nos puxa para a estagnação, em vez de serem referências para a transformação e evolução.

É tão forte o peso do Sonho do Planeta que, escrevendo estas linhas, fico imaginando que não sei o que mais poderiam significar estas casas, que experiências elas poderiam representar além de eu ser uma "pessoa mais importante e com mais dinheiro e estabilidade", e também imagino que não tem sentido não lutar por isso apenas, e que conquistar isto (segurança, estabilidade etc.) é o caminho e a base para a evolução. Fui convencido e meus olhos não conseguem atravessar a névoa e ver algo além. Sinto que existe, mas ainda não reconheço em mim mesmo a capacidade de Ver além.

Como diz o Osho, "...um tomate não pode analisar outro tomate, ele precisa ser mais que um tomate para isto...", e, em termos de olhar a dimensão da nossa existência dentro do estado do Sonho, somos tomates tentando se entender. Por isso a mesmice e a repetição dos conceitos astrológicos; por isso nossa resistência em aceitar que a Astrologia poderia ser diferente do que é. É a mesma resistência em aceitar que nós poderíamos ser diferentes do que somos.

Existe algo em nossa mente que julga a tudo e a todos, incluindo o tempo, o cão, o gato... tudo. O Juiz interno usa o que está escrito no Livro da Lei para julgar o que fazemos e o que não fazemos, o que pensamos e o que deixamos de pensar, mais tudo o que sentimos e deixamos de sentir. Tudo vive sob a tirania deste Juiz. Todas as vezes que fazemos alguma coisa que vai contra o Livro da Lei, o Juiz diz que somos culpados, que precisamos ser punidos e que deveríamos nos envergonhar. Isso acontece muitas vezes por dia, dia após dia, ao longo de todos os anos em que vivermos.

Este algo que existe dentro de nós e que julga é, na verdade, o significado reduzido, distorcido e adaptado pelo Sonho do Planeta para a expressão autorizada de cada símbolo planetário em nosso horóscopo pessoal. Cada expectativa representada por um planeta conduz a um julgamento, pois construímos a realidade a partir desta expectativa, e quando não conseguimos elaborar uma realidade adequada e satisfatória à nossa expectativa, tentamos estabelecer outros critérios para mudar esta realidade, e o mecanismo disso é o julgamento.

Como o julgamento é baseado no Livro da Lei, o significado possível de cada planeta é potencializado pelos códigos e regras contidos neste livro. É isto que passamos a achar certo, é este o significado - o do Livro da Lei - que atribuímos aos planetas no mapa astrológico.

Daí que Vênus passa a corresponder simplesmente aos critérios universais de relacionamento, mas este desejo e estes critérios de relação estão de acordo com o Livro da Lei, são aceitáveis dentro do grande Sonho do Planeta, não representam nenhuma liberdade, nenhuma transgressão. Apenas adaptação aos padrões comuns e aceitáveis pela Ilusão Coletiva de certo e errado.

Evidentemente que Vênus, utilizado de acordo com a Lei do grande Sonho Coletivo, não representa necessariamente infelicidade ou desequilíbrio. É necessário sabermos caminhar também neste sonho, pois é nele que nascemos. Mas, olhando em volta de nós, olhando em nossas próprias vidas, percebemos com clareza a quantidade de experiências que deixamos de viver, a intensidade do sofrimento amoroso que as pessoas encontram, a dificuldade que existe para se fazer uma escolha saudável e viver uma relação harmoniosa e plena. Por que será?

Bem, imaginamos que, para o Sonho do Planeta, para que Ele se mantenha, não seria conveniente que as pessoas experimentassem a plenitude do relacionamento consciente, isento de culpa e de competição e conflitos inúteis, pois assim todos descobririam que estamos juntos, que podemos trocar, compartilhar e confiar uns nos outros, e isto seria extremamente perigoso e revolucionário para a manutenção do Sonho, pois eliminaria nossa maior fragilidade.

Isto foi apenas um exemplo de como a necessidade de julgar tudo segundo os critérios do Livro da Lei, o manual de regras do Sonho do Planeta, distorce e nos faz viver distantes de nós mesmos, alheios à nossa plenitude e aos seres divinos que somos.

Pensemos em outro exemplo: Saturno. Este aí, uma das molas mestras da manutenção das leis que nos atrelam ao grande Sonho. O julgamento que Saturno faz da realidade é sempre baseado no medo, na fragilidade de nossa estrutura, exatamente porque no Livro da Lei consta que nascemos frágeis (educadores, parentes etc., insistem obsessivamente em mostrar nossa fraqueza, e que, se não formos obedientes à Lei, seremos punidos), consta que o Medo é uma das referências para definirmos e julgarmos a realidade.

Será que Saturno em outra dimensão de compreensão é apenas medo? É apenas necessidade de segurança? É apenas rigidez? Ou estes critérios, que funcionam como lentes para que vejamos o mundo apenas de acordo com eles, apenas se prestam para que nos mantenhamos atrelados ao Sonho do Planeta e suas decorrências?

O jogo da vítima

Existe outra parte de nós que recebe os julgamentos, e essa parte chama-se: a Vítima. A Vítima carrega a culpa, a responsabilidade e a vergonha. É a parte de nós que diz: "Sim, você não é bom o suficiente". E tudo isso é baseado num sistema de crenças que não chegamos a escolher. Essas crenças são tão fortes que, mesmo anos mais tarde, depois que fomos expostos a novos conceitos e tentamos tomar nossas próprias decisões, descobrimos que essas crenças ainda controlam nossas vidas.

O movimento da vida, seja no Sonho ou fora dele, é sempre um fluir e refluir, a vida vem em ondas como o mar, como diz a canção. Tudo é energia, tudo flui através de ondas, e isto é um fenômeno comprovado fisicamente.

Neste vai-vem, o julgamento e sua contrapartida também estão submetidos ao fenômeno ondulatório. O julgamento é o mundo se oferecendo para a gente e, filtrado por nossos canais distorcidos e modulados pelo Sonho, provoca uma resposta à altura, que é a conduta de vítima.

Ser vítima é uma reação e uma conseqüência da expectativa inadequada, ou melhor, adequada apenas ao Sonho, e não ao nosso instinto e nossa natureza essencial.

O jogo da vítima é absolutamente institucionalizado e aceito dentro do plano do Sonho. É incômodo, é verdade, mas nossa maneira de construir uma realidade sustentada por julgamentos implica a reação inevitável de sermos vitimados por estes mesmos julgamentos que fazemos todo o tempo.

Os planetas no horóscopo cumprem a dupla função de julgar e de ser vítima, que é a mesma coisa que ser julgado como conseqüência dos nossos julgamentos.

Júpiter, por exemplo, julga moralmente, e depois se torna vítima moral do julgamento que faz, como forma de justificar-se e suportá-lo. Saturno julga o peso, a medida e a conveniência das coisas todas, e torna-se vítima do medo de sair da medida, perder os limites, perder a estrutura. Marte julga a energia investida, por si mesmo e pelos outros, julga a sexualidade e o vigor das coisas - em vez de vivê-las como lhe compete - sempre com base em regras que nem sempre correspondem ao tônus e à natureza da pessoa; depois se torna vítima de seu desejo, vítima de seu gesto, que isto faz parte do script de manutenção do Sonho. Mercúrio vive do julgamento que cada palavra de seu discurso, cada movimento de sua compreensão produz; e é vítima da incompreensão que isto provoca, é vítima de eternos mal entendidos, ou pior, vítima da interpretação inadequada do que é real e do que é imposto a nós pelo Sonho. Vênus, o senhor do desejo, julga acompanhando os critérios impostos pelo Livro da Lei, em vez de simplesmente desejar com o coração; torna-se uma vítima contumaz de suas escolhas inadequadas e de seus desejos sem coração.



Toda expressão destes planetas é acompanhada de culpa e sentimento de inadequação, por não estarmos acompanhando o desejo de nosso íntimo, por estarmos submetendo a expressão destes símbolos planetários a um modelo que muitas vezes não corresponde à nossa real necessidade. Esta culpa, para ser aliviada, precisa de que assumamos a postura de vítima, para não sermos responsabilizados pelo destino, ou sei lá por quem, por não termos respeitado nossa verdadeira natureza, por termos adotados critérios e regras que precisavam de julgamento, em vez de serem espontâneos e naturais, principalmente para amar.

Quem ama sem julgamento? Quem não conhece a condição de ser vítima do amor? Vítima das escolhas amorosas que foram produto de julgarmos entre o certo e o errado, entre o bom e o ruim, com base em critérios que são culturais, em vez de obedecermos nosso coração.

O que quer que vá contra o Livro da Lei irá fazer você experimentar uma sensação estranha no plexo solar, que é chamada medo. Quebrar as regras do Livro da Lei abre seus ferimentos emocionais, e sua reação cria veneno emocional. Porque tudo que está no Livro da Lei tem de ser verdade, qualquer coisa que desafie aquilo em que você acredita irá produzir uma sensação de insegurança. Mesmo que o Livro da Lei esteja errado, ele faz com que você se sinta seguro.

Quebrar as regras é muito difícil. Sempre temos a sensação de que temos algo muito precioso a perder, fomos convencidos disto desde a infância. Mas nunca sabemos o que é este algo que podemos perder. O que será?

Bem, entre outras coisas, perdemos a sensação de "pertencer", esquecemos que pertencemos naturalmente ao mesmo plano, à mesma espécie, ao mesmo planeta, ao mesmo organismo cósmico, e vivemos a ameaça de, por qualquer transgressão ao Livro da Lei, sermos excluídos da tribo, e este medo constante nos assombra.

Sermos excluídos da espécie ou deixarmos de fazer parte do gênero humano é uma impossibilidade natural, mas isto não nos avisaram. Acabamos convencidos pelo contexto dos sonhadores que "pertencer" é poder prestar contas continuamente do que somos, de quem somos, do que estamos fazendo, do que fizemos. Somos na verdade uma biografia ambulante, uma descrição de nós mesmos e do que esperam de nós, e é comum esquecermos quem somos na verdade e nos confundirmos com a descrição de nós mesmos - a que fazemos e a que os outros fazem.

Talvez nos primórdios da humanidade, ou em pessoas que sobrevivem em condições muito precárias e selvagens, a presença da tribo realmente representasse proteção, mas, curiosamente, entre estas pessoas a ausência de medo e a auto-suficiência é notavelmente maior que entre os homens civilizados.

A idéia de que "não nos bastamos" muda completamente o código de leitura do horóscopo. Toda interpretação passa a ser feita em função da pressão, das cobranças do contexto onde a pessoa vive. Toda interpretação dos símbolos astrológicos passa a ser uma descrição das expectativas que a sociedade tem do indivíduo, e se ele está correspondendo ou não a elas, se está sendo feliz por sentir-se aceito na tribo, ter algum grau de importância na tribo, ter status por ser o que esperam dele. Bem, talvez isto seja o certo, não é? Quem sabe?

Os vínculos pessoais e sociais em geral, que poderiam corresponder a uma troca amorosa, a uma complementação energética e afetiva, acabam funcionando como desafios e questionamentos desnecessários; funcionam como exercedores de pressão, como se cada pessoa fosse uma "quadratura" que nos mantém eternamente vigilantes e atentos às ameaças do julgamento do "outro", e sempre preparados para assumir o papel de vítima, completando a trama das relações de dependência.

Quando ousamos sermos nós mesmos, seguir nosso instinto ou coração, a reação que surge não é apenas a angústia existencial: realmente abrem-se as feridas de nossa desconexão com a essência, e temos que nos intoxicar de ilusões, ou de comportamentos típicos de vítima, para suportarmos a dor desta ruptura com a gente mesmo. Como vítimas fica mais fácil, a coisa se justifica, redime-se de certa forma.

Valdenir Benedetti

Nenhum comentário:

Postar um comentário