No dia 13 de julho de 2009, Valdenir Benedetti deixou este mundo para viver entre as estrelas, talvez seu ambiente mais familiar. Porém aqui permanece imortalizado pela sua maneira de pensar e ensinar a astrologia. Muito amado por muitos, deixou uma marca indelével em seus alunos e em todos os astrólogos que com ele conviveram e que reconheceram nele um renovador da nossa arte de interpretar os céus. Como acontece a todos os que ousam transgredir, questionar e inovar, também teve lá seus desafetos, faz parte... Por sorte deixou inúmeros textos, alguns publicados outros não. Este blog foi criado para que todo o seu pensamento fosse acessível tanto aos que o conheceram quanto aos que, ao longo de seu aprendizado da Astrologia, com certeza dele ouvirão falar.



"Há pessoas que nos falam e nem escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidase nos marcam para sempre."

Cecília Meireles







26.6.10

A GRANDE DAMA

Um amigo me apresentou a idéia de que para ele a astrologia se parecia com uma senhora assim meio gorda, meio decadente, com verruga no nariz e um tanto esculhambada. Essa era sua visão pessoal para a Grande Dama.


Estávamos conversando sobre amar ou não a astrologia, dai surgiu essa idéia. Dá para amar essa tal senhora?

Creio que ele a viu de verdade, como ela é, como ela pode ser. Ou como a veríamos se a encontrássemos em um descaminho qualquer da vida.

Ela é assim mesmo, eu creio.

Meio aquelas xamãs que o Castañeda teve que se confrontar em seu aprendizado com D. Juan. Tinha até uma que convoca essa imagem, "La Gorda", uma feiticeira perigosa e poderosa que poderia matar quem não fosse um homem de conhecimento, um homem de poder.

Creio que a astrologia é assim mesmo, como La Gorda, uma feiticeira de muitos poderes, uma encantadora que domina os mistérios, que cozinha as forças da natureza em seu fogão de energia solar e lenha fumarenta.

Seios grandes e caídos sobre o peito, seios de quem amamentou muitas crias, pele morena e esticada, com algumas rugas que parecem caminhos para o infinito, e cabelos antigos, muito antigos.

Ela pode ser encontrada na madrugada em um buteco na Lapa, comendo torresmo e ovos coloridos, bebendo cerveja com prostitutas decadentes, migrantes sertanejos, estivadores e madames satã reencarnadas, viados, traficantes e algum burguês perdido, querendo parecer exótico.

Ela pode ser encontrada entre as senhoras que recolhem roupas para campanhas de inverno. Pode estar às vezes cantando hinos em uma rodinha de evangélicos na praça de alguma cidade. Pode ser aquela mulher sem rosto, suada, carregando uma imunda sacola de compras e indo em direção a lugar nenhum.

Ela pode parecer uma jovem tesuda de cabelos encaracolados, daqueles que parecem estar sempre molhados, daquelas que parecem sempre estar saindo do banho, fresca e viçosa, e que provoca o olhar ávido dos homens, o olhar blazê que disfarça a inveja de algumas mulheres. Pode parecer uma executiva elegante a caminho de uma reunião de deuses do dinheiro em lugar nenhum. Pode parecer até mesmo uma criança pedindo para ser embalada, como já disse outro enamorado dessa dama. Pode parecer o que quiser, porque a grande Dama é a expressão do encanto, e será aquilo que conseguirmos enxergar, aquilo que precisarmos enxergar, aquilo que merecermos enxergar.

Ela não é necessariamente bonita, mas é fascinante, emana um poder, um tipo de luz. Provoca o a sensação de que ela tem o poder de nos abrigar, nos acolher, mas pode também nos sufocar, enlouquecer, matar mesmo se assim lhe convier.

Mas quase nunca vemos seu rosto, ela parece estar sempre olhando para outro lado, e muito raramente mesmo, encontramos seu olhar, pois ai é que parece estar o centro de seu poder, o centro do universo, o vértice de toda energia, um turbilhão de forças caóticas de onde tudo que existe se origina.

Nossa tacanha expectativa ousa imaginar esse olhar, acredita poder imaginar os olhos e o olhar da velha dama.

Esperamos que seja baço, pela aparência daquele corpo gordo ou etéreo, esperamos que seja um olhar cinzento e opaco, nublado por incontáveis cervejas e baseados, tragados atrás de paredes encardidas. Pensamos que pode ser como o olhar dos insones, dos bêbados ou das crianças recém nascidas, ainda encobertas com a névoa que trazem da travessia que fizeram antes de chegar aqui.

E pode não ser nada disso. É o seu mistério.

Encarar esses olhos, mergulhar nesse olhar, pode ser uma surpresa definitiva.

Seu olhar é um abismo, tem o brilho de uma estrela, tem a cor do infinito, nos atira em um vortex magnético, nos atrai para um turbilhão de quantuns enlouquecidos, faz a gente entender o que é o buraco negro, supernova, galáxias e infinito.

Se encontrarmos esse olhar absurdo em um descuidado gesto de nossa busca, em um lapso do tempo e do movimento de nossas vidas, como quando percebemos sombras luminosas passando voláteis ao nosso lado, e ao virarmos a cabeça só encontramos a paisagem, nesse momento raro e infinito, certamente pasmos e provávelmente assustados, veremos que a velha dama, a gorda de peitos enormes e densos, tem os olhos da pessoa amada, aquela que se foi para a terra do nunca, ou que nunca chegou a acontecer além de nossos mais secretos sonhos.

Reconhecemos, quando temos a oportunidade de encontrá-la em algum recanto selvagem e belo da natureza, em algum muquifo sórdido habitado por almas perdidas, o fato de que a grande dama, a senhora Astrologia, parideira de ânimas, arquétipos, deuses, reconhecemos enfim que essa grande senhora é a fonte por onde brota a água mais sagrada, a água do amor e do conhecimento.

Ninguém pode simplesmente amá-la, pois se ela é a fonte dessa energia, do próprio amor, seria o paradoxo. Ela é a fonte ou talvez o canal, não sei bem.

Cada vez que olho um circulo, olho para Venus majestosa no céu, olho para a Lua clareando caminhos, aqueço meus ossos ao Sol da tarde, sinto a presença dessa dama, sinto seu cheiro, seu suor, sua energia envolvente.

Cada vez que ouço uma musica e percebo o ritmo que existe, cada vez que sinto e lembro a existência de meu coração batendo no peito, cada vez que percebo a dança das energias entre as pessoas, se amando, se odiando, reconheço a velha senhora caminhando com seus passos suaves entre todas as coisas, entre os seres, ocupando cada silêncio entre as notas da melodia, o suspiro dos amantes, as batidas do tambor.

Ela está aqui, está em todo lugar, porque ela é infinita como o infinito, porque ela é a portadora da Lei, das tabuas da grande Lei, e ai reside seu poder.

E como disse outro alguém, ela é tão antiga que não mais menstrua, não conhece regras, superou todas as regras, a não ser as do amor e da natureza, que tem ritmo e melodia que não se pode chamar exatamente de regras.

Creio que não podemos amá-la ou desejá-la simplesmente, porque é dela que emana a energia criadora que faz com que existam todas as coisas. Mas podemos ser seus amantes, e ela nos acolherá a todos, e a todos irá alimentar com seu leite, com sua verdade, com sua luz.

VaL

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