No dia 13 de julho de 2009, Valdenir Benedetti deixou este mundo para viver entre as estrelas, talvez seu ambiente mais familiar. Porém aqui permanece imortalizado pela sua maneira de pensar e ensinar a astrologia. Muito amado por muitos, deixou uma marca indelével em seus alunos e em todos os astrólogos que com ele conviveram e que reconheceram nele um renovador da nossa arte de interpretar os céus. Como acontece a todos os que ousam transgredir, questionar e inovar, também teve lá seus desafetos, faz parte... Por sorte deixou inúmeros textos, alguns publicados outros não. Este blog foi criado para que todo o seu pensamento fosse acessível tanto aos que o conheceram quanto aos que, ao longo de seu aprendizado da Astrologia, com certeza dele ouvirão falar.



"Há pessoas que nos falam e nem escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidase nos marcam para sempre."

Cecília Meireles







26.6.10

AUSÊNCIAS

Ausências

“... Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada,

aconchegada nos meus braços, que rio

e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.”



Carlos Drummond de Andrade

Turbilhões de sentimentos me dispersam, se é que é possível alguém ser dispersado. É possível que aconteça da mente perder o foco, se deslocar do ponto de fuga da tela que denominamos realidade, e a isso nós chamamos de dispersão, mas é apenas um nome, pois parece que estamos integrados de tal forma que a dispersão não é realmente possível, pois seria como experimentar a desintegração de si mesmo, ver nossos átomos se espalhando por aí em pés de vento, rodamoinhos de átomos de gente, se fundindo ao nada, se misturando com o todo, e no momento ainda conectados ao corpo, não estamos preparados para isso.

Mas os sentimentos continuam a aflorar aos borbotões, e eu acho linda essa idéia de “aflorar aos borbotões”, seja lá o que for “borbotões” (essa palavra parece representar uma cascata que brota do solo dos sonhos e jorra para cima, circular e espumante, fazendo o som das asas de milhares de mariposas em polvorosa, aliás, outra palavra interessante...). Estou percebendo, reconhecendo em mim, a resistência que nós temos à perda, de qualquer coisa, de absolutamente tudo. Qualquer mínima ruptura é uma perda, qualquer afastamento é sentido como uma perda, mesmo quando é importante e necessário, mesmo quando é inevitável.

Minha memória retorna ao momento não muito distante de uma grande perda, a de uma irmã querida, como costumam ser as irmãs. Meus pensamentos vagueiam através dos mistérios da ausência, das conversas que nunca aconteceram, das declarações de amor que não tivemos chance de dizer, mas que estavam latentes, presentes no olhar, no gesto, no cuidado. Mas faz falta, faz mesmo uma falta imensa (como podemos dimensionar a falta de algo? Como chamar uma “falta” que algo nos faz de grande ou pequena? Será o tamanho do espaço vazio que fica?). Os detalhes do vazio se acumulam e invadem o pensamento a cada instante. A firmeza no pensamento é fundamental para que não nos entreguemos à melancolia, que nada de bom trará, pois a vida continua sempre para frente.

Ainda percorrendo os labirintos da memória, me deparo com outras ausências, espaços imensos que ficaram dentro de mim, ocupados no seu tempo por pessoas que amei intensamente, ou penso que amei, quero crer que amei.

Sem enveredar pela lembrança dos fatos e das eventuais mágoas fecundadas por antigos sentimentos, mas recordando apenas as muitas faltas que senti, começando a se apresentar aquele ardor morno da saudade, que vem serpenteando sinuosa se a imagem amada é evocada, surge a perplexidade diante do vazio imenso, vertigem diante do abismo que ficou dentro de mim, consequência das histórias, de todas as histórias de amor vividas, da história dos amores que partiram.

Reflito e percebo nesse instante que toda perda tem o mesmo sabor. Gosto de ranço, gosto de vazio, gosto de fracasso. Talvez não seja assim para todas as pessoas. Quem pode saber? Mas em geral, quando uma pessoa amada vai embora, seja uma irmã, seja um companheiro, um amigo querido, alguns órgãos de nosso corpo, que cumprem suas missões silenciosamente, começam a produzir humores e secretar fluidos misteriosos que alteram nosso paladar, e o gosto pela vida fica diferente, bem diferente. Pelo menos até entendermos e assimilarmos a perda, esse será o sabor que prevalece.

Em minhas lembranças, nesse momento, a presença poderosa da morte é intensa. Qualquer perda possui a natureza da morte. É uma lição que não devemos desperdiçar, aliás, que precisamos aproveitar. O momento é de enterrar antigos esqueletos que guardávamos nos armários do ser, limpar nostalgias emboloradas que se colavam nas paredes da memória, apegos tolos e mesquinhos que conservamos como jóias de estimação, mas que na verdade são bijuterias sem valor algum. O momento é de deixar todas essas coisas irem junto com o ser que partiu, aceitar a ausência como um espaço livre a ser preenchido, para que o novo surja e nos transforme. “Carpen Die”.

A vida é ligeira, rápida, fugaz, e os apegos são lastros que nos tiram da sintonia dessa fluidez, nos alicerçam no solo, enraízam nosso corpo, cristalizam nossos gestos, nos fazem perder a oportunidade de seguir com o vento. Podemos perder num instante a oportunidade rara de sermos livres. E oportunidade, como alguém já disse, é como uma flecha já lançada ou uma palavra dita, não pode mais ser mudada...

Mas, no que eu me apego, quando se trata do “outro”? Creio que nos apegamos ao sentimento puro e simples, àquilo que nós mesmos sentimos; nos apegamos à capacidade de amar, que é um dom pessoal, e acreditamos que esse dom provém do “outro”, depende dele e se origina nele, e quando esse “outro” se vai, sentimos como se levasse consigo tudo que tinhamos, todo sentimento que serviu para nos unir. Quando o “outro” se vai, carrega para longe essa capacidade amorosa, esse dom de sentir, que como já disse, é nosso, uma qualidade que pertence a cada um de nós, que flui do universo através de cada um.

Também nos apegamos aos vazios que contemos, e que geram em nós a necessidade de serem preenchidos, completados através do ato de viver. Projetamos no espelho que é o “outro” a expectativa de que ele preencha esses vazios que possuímos (como conter um espaço vazio? Como se apegar a algo que não existe ainda?), enquanto que ele, a outra pessoa, está também esperando que a gente preencha seus espaços, e assim vamos criando um jogo estranho de trocar ausências e nos relacionarmos através dessas ausências. Um jogo de xadrez sem damas, torres, cavalos e peões, apenas com os quadrados vazios do tabuleiro e as expectativas e fantasias de cada jogador. Quem ganha e quem perde um jogo assim? Esse é, talvez, o verdadeiro jogo das ilusões.

É imprescindível reconhecer que todo apego é uma possível conexão com o que falta dentro de nós, é um contato intenso com nossas ausências, com nossos vazios, com aquilo que cada um precisa estudar e conhecer de si. O ato de viver, acompanhar o vento ligeiro do viver, pede que a gente modifique a tendência a se apegar também ao vazio do outro e comece a preencher os espaços que necessitam serem preenchidos a partir de nós mesmos.

Pode parecer poético apenas, mas acredito que os espaços internos, nossas ausências, podem ser preenchidos com amor. E esse amor que ocupa todos os vazios, é o amor da Natureza, o amor que vem sob a forma de Luz, o amor por si mesmo e pelas coisas da Realidade, e isso nada têm a ver com o amor pelos vazios que o “outro” contém.

Um caminho possível é o de procurar nos focalizarmos na “inteireza” do outro, na sua plenitude, na constatação do que “ele” tem de completo e, para conseguirmos isso, é necessário procurar primeiro em nosso íntimo a inteireza que temos, pois é a condição, a referencia essencial para localizar no “outro” aquilo que ele tem de mais elaborado e evoluído. O vazio interior a ser preenchido é uma tarefa de cada um. Precisamos elaborar, enfrentar e preencher nossas próprias ausências através do conhecimento de si. Eu preciso viver meu movimento, minha própria busca, e aprender a deixar fluir esse amor para que ele me torne cada vez mais pleno. O “outro” precisa também vivenciar seus próprios processos e aprender a canalizar o amor necessário para ocupar seus espaços, ausências que ele contém.

O esforço para constatar nossa própria inteireza e para sentirmos e reconhecermos a plenitude do “outro”, é um caminho para chegar a essa condição, aquela que permite que o amor do universo flua através de nós (talvez esse amor não possa atravessar o vácuo de nossas ausências... e por isso a necessidade de sermos inteiros... quem sabe?).

Nada disso é fácil, é o trabalho de uma vida, de muitas vidas talvez. O hábito de nos apegarmos aos vazios é muito forte e muito antigo, está como que impregnado em nosso programa existencial, e orienta nossa conduta. Largar esse hábito é trabalhoso e exige esforço e imensa determinação. Talvez a observação cuidadosa do sentimento que aflora quando de fato perdemos alguém fisicamente, como talvez um tipo de sacrifício santo, nos apresente algo muito além do vazio que aquele que partiu deixou (como alguém pode deixar um “vazio”, algo que não existe?... talvez apenas o sentimento e a crença no “vazio” é que fica), pode ser que essa observação nos mostre a totalidade e a inteireza daquele que se foi, e essa é a herança que pode ficar, a consciência de que aquele Espírito e o seu corpo, agiu e caminhou sempre na direção da sua própria plenitude. E isso é belo e digno.

A TV está ligada. São 5 horas da manhã. Ruídos chamam minha atenção. Na tela, Bruce Lee, tranqüilo e infalível, luta energicamente para proteger uma ou outra mocinha. Qualquer olhar é pretexto para uma luta, com infinitos adversários que se sucedem como ondas do mar, um após o outro, às vezes em bando, cada qual demonstrando um estilo sofisticado de luta. Movimentos exatos, coreografias belíssimas, malabarismos impossíveis, tigre, garça, serpente possuindo os lutadores. Observo que nessa arte marcial, o que cada um busca para derrotar o adversário é sempre sua ausência. Das presenças eles se defendem, pois elas podem ser sua derrota, o golpe que determinará o final da luta. As ausências podem ser úteis, pelo menos no caso de uma luta, pois elas mostram sempre onde está a fraqueza do outro, onde está o buraco em seus gestos, onde está o espaço a ser ocupado pelo golpe certeiro.

Se nós estamos querendo amar e viver mais intensamente, porque não nos questionarmos a respeito do hábito de buscar ausências? Não estamos lutando kung-fu, estamos querendo compartilhar o amor que o Universo nos dispôs, compartilhar a vida que o Poder Superior nos concedeu.

Reconheço o imenso valor de todos os que se foram, todos os amores que partiram, para outro lugar ou para outro plano. Estou usando sua ausência para me conscientizar de minhas próprias ausências. Nesse momento em que constato a grandiosidade e o real significado de sua ausência, em que reconheço a falta que me fazem, estes amores estão presentes e vivos dentro de mim, pois o que fica, está claro agora: é sua inteireza e sua plenitude, me completando e me ensinando a permitir que flua mais amor através de meu gesto e meu viver. O resto não importa, não é nada, apenas vazio, apenas ausências.

Reconheço também que, por causa de ter sentido com tanta força o espaço vazio deixado por aqueles que me partiram, que foram embora de minha vida, me apeguei a esse vazio e me empenhei em preenche-lo com medo, ressentimentos, mágoas. Sei que isso na verdade não importa para quem se foi, para quem teve que seguir seu destino, pois essa substância de preencher vazios não vale nada, não tem força gravitacional, não tem massa, Luz ou conteúdo. São fantasias causadas pela falta de conexão com minha própria inteireza. Amarguras provocadas pela ausência de mim mesmo, pela falta de contato consciente comigo mesmo e por isso não são nada. Podem ir embora. Devem ir embora.

Pensei em escrever a respeito das expectativas representadas pelo horóscopo, em como elas se transformam em ausências antes de acontecerem, em como algumas configurações não potencializadas se transformam em buracos, espaços de vácuo do não vivido, mas creio que não é o momento. O sentimento despertado por essas constatações me basta. Não preciso nesse momento racionalizar o que sinto. Basta sentir e deixar. Apenas deixar.

Os acordes de uma velha canção surgem na mente nesse momento, pensando nas ausências e na saudade, cantarolo quase sem querer:

Esqueci de tentar te esquecer

Resolvi te querer por querer

Decidi te lembrar quantas vezes eu tenha vontade

Sem nada perder...

O sol está nascendo. Vou me deitar e pedir para que ele nasça também dentro de mim e, quem sabe, se eu tiver merecimento, sua luz poderosa ilumine minhas ausências, preencha o que tem de ser preenchido em mim, amplie minha consciência, me faça semente de algo bom, de sua Luz talvez.

Valdenir Benedetti

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