No dia 13 de julho de 2009, Valdenir Benedetti deixou este mundo para viver entre as estrelas, talvez seu ambiente mais familiar. Porém aqui permanece imortalizado pela sua maneira de pensar e ensinar a astrologia. Muito amado por muitos, deixou uma marca indelével em seus alunos e em todos os astrólogos que com ele conviveram e que reconheceram nele um renovador da nossa arte de interpretar os céus. Como acontece a todos os que ousam transgredir, questionar e inovar, também teve lá seus desafetos, faz parte... Por sorte deixou inúmeros textos, alguns publicados outros não. Este blog foi criado para que todo o seu pensamento fosse acessível tanto aos que o conheceram quanto aos que, ao longo de seu aprendizado da Astrologia, com certeza dele ouvirão falar.



"Há pessoas que nos falam e nem escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidase nos marcam para sempre."

Cecília Meireles







26.6.10

ADEUS

A morte física não me impressiona tanto, talvez muitos velórios domésticos, quando eu era criança, tenham me acostumado com isso - coisa de Escorpião. Os mortos são serenos - e hoje eu vi um morto sereno. Em paz, como há um bom tempo eu não o via. Em paz.


No silêncio que esse lugar de cortejar os corpos mortos nos impõe, minha mente viajou, mergulhou no túnel do tempo - e eu experimentei, por alguns instantes, a sensação do momento em que, pela primeira vez, entrei no "espaço de ficar" de meu velho amigo.

Um pequeno escritório, paredes amareladas por milhões de cigarros fumados, ainda, naquela época, compulsivamente. Galaxy slims derramando-se sobre um largo cinzeiro, boa parte sobre a mesa - que o cinzeiro vivia cheio. Um dia, por exigência de seus pulmões fragilizados, deixou os cigarros, radicalmente. Deixou um amigo de 50 anos, o que não é fácil... E jamais lhe ouvi uma queixa siquer...

E livros, infinitos livros, pilhas e pilhas de livros esparramados por todo aposento, as estantes transbordando, a mesa lotada de livros e peças de computador, impressoras, disquetes sem nome contendo misteriosos e intangíveis programas...

Impossível achar qualquer coisa que procurássemos por ali - bem, talvez alguma coisa que não estivéssemos procurando, pudesse ali ser encontrada. Mas o Sérgio sabia exatamente onde estava cada partícula daquele caos, coisas da física quântica que só um netuniano é capaz de entender. Administrar partículas e caos, coisa de físico mesmo...

Mas o que mais chamava a atenção, naquele lugar, era o próprio Dr. Sérgio. Encurvado sobre o teclado, catando um milho sofrível, sempre em frente ao monitor do computador (aliás geralmente programado com cores berrantes tipo mochila de surfista, roxo, verde limão, por aí...) Ele gostava assim e pronto. Essa é a imagem mais forte que vai ficar dele, olhando assim de lado, o formato do Saturno, a firmeza do Saturno. Não adiantava tentar explicar um jeito mais fácil de formatar um texto ou uma planilha. Ele ouvia com atenção e fazia exatamente do jeito dele. "Eu gosto assim", dizia.

Muitas vezes estive nesse lugar, e muitas vezes me veio à mente O Castelo de Franz Kafka, um lugar com prateleiras de altura e comprimento infinitos, recheadas de papéis, onde o Sr. K., agrimensor contratado para fazer algum trabalho no território do castelo, imaginava que estavam suas ordens de serviço, que jamais foram encontradas...

Outra compreensão que me aflorou, durante as muitas noites que passamos copiando programas e batendo papo, e discorrendo sobre astrologia, mapas, programas, astrologia, mapas, medicina, programas - bem antes da existência da Internet e dos pentiae... e depois também - é que aquele lugar, com sua infinidade absurda de livros caoticamente organizados, e aquele Sr. Saturno imperando, totalmente domiciliado, eram a reprodução, a própria materialização da mente do astrólogo.

Creio que é exatamente assim, a cabeça da maioria de nós. Uma multidão de idéias, informações, conhecimentos, sentimentos espalhados pelo chão da mente, pelas prateleiras da mente, com uma esperança distante de que, um dia, a gente consiga organizar tudo o que fomos e o que estivemos avidamente absorvendo em nossa caminhada, com a ilusão de que, talvez, todo o conteúdo daqueles milhares de livros, em princípio inconsciente, se torne um dia totalmente consciente... quem sabe...

Se tiver que ser pintada, um dia, a mente do astrólogo, tem que ser daquele jeito. Pra sempre vou me lembrar daquilo...

O Sérgio tinha um prazer imenso em copiar programas. Não era por causa da grana, que ele comprava os programas originais. Era pra dar para os amigos, compartilhar. A maior besteira era dar um programa pra ele e dizer para não copiar para ninguém... doce ilusão...

Creio que, com aquele Saturno determinando o projeto de vida dele, tão poderoso e inexorável em sua rigidez - sua vida muito disciplinada, um estudioso metódico e rígido, e profissionalmente também assim, impecável por tudo que eu sei - precisava de um escape, de uma válvula, onde o Netuno, além da intuição, afinando-se com a vida como um gesto, se expressasse... Alguma mínima transgressão, um pouquinho de "malandragem do bem", que não prejudicasse jamais quem quer que fosse, que servisse como código aquariano do "compartilhar" aquilo que a todos deveria pertencer... Nos divertimos à beça com isso. E aprendemos muito também: sobre programas, sobre amizade, sobre doar, sobre astrologia...

Certa vez tive um computador roubado, acho que um 200 mhz, o supra-sumo da época. Meu único bem material - e ferramenta de trabalho. Tinha um livro inteiro lá dentro, que se escafedeu. O Dr. Mortari mobilizou um pessoal - entre eles o Adonis Saliba, um outro sujeito que vendia máquinas pra gente e cujo nome me foge no momento, também o Osmar Jardim, de quem me lembrei agora... - no dia seguinte, me deram, cada um, um pedaço de computador; e, assim, um novo PC foi montado. Era o suficiente para que eu pudesse trabalhar. Jamais me esquecerei desse gesto de amizade que, inclusive, foi um gesto de cura real para mim.

Tem muitos casos, alguns hilários, outros bem tristes e outros amargos... vivemos muitos momentos nessa amizade que tem história, que deixou uma história mais rica e plena em minha vida. História de amizade real...

Só quero dizer mais uma coisa que é importante, nesse jeito que achei de chorar aqui...

Em certos momentos, quando senti um vazio imenso em minha existência, solidão quase cósmica, quase absoluta, tristeza pela história triste da vida - talvez um pouco de pena de mim mesmo... - nesses momentos, o Sérgio representou a figura de um pai que não tive, um pai que não conheci; e isso me fez muito bem, e sou grato por ter tido essa oportunidade.

Mais um ser humano, um espírito que veio aqui aprender e aprendeu muito, que completou o curso, o estágio, podendo ir para outro plano se preparar para, em algum momento, iniciar outro aprendizado. Faz falta a pessoa, o corpo sente falta da energia, da troca, mas o espírito está em paz - porque esse compartilhar ajudou a compor a história de nossa vida, torná-la mais densa, mais inteira, mais real e absoluta e verdadeira.

Sou imensamente grato pelo privilégio que o universo me concedeu de conviver com esse velho saturnão, com esse amigo de verdade, que nunca me traiu e sempre esteve presente.

Agora, se me permitem, vou para casa chorar um pouco.

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